domingo, novembro 15, 2015

Não nos cubram com a bandeira francesa, por uma questão de higiene

Gosto muito da França, especialmente de Paris, e tenho um apreço especial pelos franceses, entre os quais conto com grandes amigos.
Estudei jornalismo no CFJ, na Rue du Louvre e tive a oportunidade de conhecer, em 1974, alguns dos maiores vultos do jornalismo francês, de que destaco Hubert Beuve-Méry, Jean Daniel e J.J Servan-Schreiber,  pai do David Servan-Schreiber, que conheci quando ele tinha 13 anos e que, mais tarde, se tornaria o  meu guru do cancro.
Paris era, nessa época, a maior cidade portuguesa, a cidade de toutes les concièrges.
Quando estive em Paris -  com o Mário Bettencourt Resendes, o Joaquim Vieira, a Maria Elisa, o Pedro Mariano, o Pedro Luis de Castro, o Francisco Burnay, o Manuel Lamas, o João Vale de Almeida, entre outros – estava no poder Valery Giscard d’Estaing.
Tive a a oportunidade de  acompanhar a cimeira de Rambouillet  e as conversações entre Giscard e Leonid Brejnev, em dezembro de 1974.
Talvez tenha sido nessa época que se desfizeram boa parte das ideias que eu tinha alimentado, na senda dos escritos da Jeune Afrique, sobre a posição anticolonialista da França, para as substituir por outras, desenhando uma França neocolonialista, disposta a fazer tudo para recuperar influência no exterior, usando para isso os meios que fosse necessário usar.
Lembro-me de uma conversa com um assessor de Giscard em que, precisamente, se questionava por que razão podia a União Soviética fornecer armas a Angola e Moçambique e não podia a França fazer o mesmo.
Quem não podia fornecer armas às suas antigas colónias era Portugal, por razões que não consegui descortinar na juventude dos meus 23 anos.
Acompanho a politica francesa desde essa época, com uma atenção diária e adotei o francês é a minha segunda língua.
Nunca fui Charlie Hebdo apesar de ter lastimado o que ali aconteceu e de continuar a apreciar esse vigoroso semanário.
Depois daquela correção de trajetória, sempre respeitei  a vocação colonialista dos franceses, sem prejuízo de sempre ter criticado os seus excessos e de, há mais de 30 anos, vir advertindo para as causas da crescente perda de influência da França em todo o Mundo, em tudo o que essa influência poderia ser positiva.
Na minha geração toda a gente que tivesse passado por um liceu falava francês; hoje o francês é uma língua que ninguém fala, como se a França foi um país decrépito, apesar de ter aumentado, por relação à década de 70 do século passado a sua presença nos teatros bélicos.
Nesse tempo, nós os portugueses, tivemos a noção da História e  – em boa parte por influência francesa, sobretudo da imprensa e dos pensadores do último quartel do século XX – descolonizamos e negociamos a independência das nossas colónias em África.
Logo no nosso encalço se viraram os franceses para a África, encetando experiências neo-coloniais que deixaram manchas em vários territórios, a maior das quais foi a do escândalo denominado Angolagate.
Tínhamos dois Estados tampões que contribuíam, de forma equilibrada para os equilíbrios regionais: a Síria e  a Líbia.
Já no século XXI franceses figuram entre os principais responsáveis pela desestabilização desses Estados, ambos membros das Nações Unidas, tanto por via do apoio a terroristas que neles atuaram como mercenários, como por via da intervenção das suas forças armadas, especialmente da força aérea.
É hoje cada vez mais claro que o ISIS - Islamic State of the Iraq and the Levant – é uma criação de alguns países ocidentais, envolvendo mercenários de quase todos os países europeus, que funciona, essencialmente, como um alibi para a sustentação de uma guerra, com os consequentes lucros para os grandes fabricantes de armamento, entre os quais estão os franceses.
Conheciam-se árabes de vária natureza na Al-Qaeda, apesar de ser conhecido e de ser controverso que Ossama Bin-Laden foi um agente americano e que a sua família privava com os Bush na fazenda do Texas.
Um dia antes do 11 de setembro, George W. Bush participou numa assembleia da Carlyle, de que foi administrador Frank Carlucci, no Ritz Carlton Hotel, em Washington, na qual esteve também presente o irmão de Osama Bin Laden, Shafiq Bin Laden.
As caras da Al-Qaeda foram, durante anos, caras amigas dos Estados Unidos e, portanto, do Ocidente.
Do mesmo modo, no Iraque e no Irão sempre pautaram homens de mão dos países ocidentais.
Saddam Hussein era um homem da confiança dos Estados Unidos.
Ronald Reagan fez dele uma aliado, estabelecendo com o Iraque uma parceria, comemorada com grandes negócios de armamento, nomeadamente armas químicas usadas contra os iranianos e os curdos.
Saddam foi uma espécie de mandatário americano na luta contra os xiitas iraniados.
Nos anos 90, os Estados Unidos assumiam que o regime de Saddam Hussein era fundamental para a defesas dos seus interesses na região.
O Iraque chegou a ter um exército com mais de um milhão de homens, equipados com armamento comprado a diversos países ocidentais, entre os quais os Estados Unidos e a própria França, que também fornecia os aiatolas do Irão.
É bom lembrar que Khomeini foi “criado” em França e chegou a Teerão (1979) num avião da Air France.
Quando a Saddam Hussein, o homem dos americanos nos vales do Tigre e do Eufrates, foi “julgado”  e condenado à morte por um tribunal que não merce nenhuma credibilidade, por crimes de que são co-autores os seus mandantes americanos, especialmente Ronald Reagan e George Bush, os verdadeiros responsáveis pelas atrocidades cometidas contra os curdos e os iranianos.
O Iraque praticamente desapareceu como Estado.
Os soviéticos ajudaram a destruir o Afeganistão numa longa guerra que durou até 1989, e no quadro da qual nasceu, sob influência americana,  a Al-Qaeda, organização que se incumbiu da gestão do apoio ocidental aos mujahidins, treinados pelo ocidente e pela China.
Depois foi o poder dos talibãs e a guerra civil, transformando-se o Afeganistão num estado pária.
Em 2012, a Líbia tinha o segundo melhor índices de desenvolvimento humano da África. Tinha também as décimas maiores reservas de petróleo do mundo.
Em 2011, os países ocidentais ajudaram, com armas e dinheiro, os movimentos terroristas que se rebelaram contra Muammar Khadafi e a NATO bombardeou os principais centros administrativos, tendo entregue o poder (se é que se pode chamar poder) aos insurgentes.
A Líbia é hoje um Estado pária...
A Síria foi uma colónia francesa até 1940, ano em que foi tomada pelos nazis, tendo declarado a independência em 1946.
A vida desde país tem sido atribuladíssima desde a independência.
Em 2011, com o apoio dos países ocidentais, desertores do exército fundamentara, o Exército Sírio Livre, que passou a combater as forças armadas sírias e que se transformou, ele próprio numa organização terrorista, suportada por mercenários de todos os matizes, na maioria sunitas, quando é certo que o poder sírio assenta em figura alauitas.
A partir de 2013, com a Síria e o Iraque em situação caótica, começa a afirmar-se, como se viesse do zero, o ISIS (ouad-Dawlah al-Islāmīyah) que, de um momento para o outro, passou a dominar uma enorme área do território da Síria e do Iraque.
Em setembro de 2014, os Estados Unidos declararam assumir a liderança de uma coligação constituída, segundo então se disse por 48 países, para combater não o ISIS mas o Estado Islâmico, conferindo por essa via a dignidade de Estado àquele grupo terrorista.
A imprensa passou  a referir-se ao 'jihadistas' do EI (Estado Islâmico) em vez do  ainda acrónimo Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS ou ISIL.
Em 2014, o Irão declarou que iria prestar apoio militar aos curdos iraquianos contra os 'jihadistas', enquanto que a Síria de Bashar al-Assad foi liminarmente afastada da coligação, apesar de boa parte das ações se desenvolverem no seu território.
A partir de 8 de agosto de 2014, os Estados Unidos passaram a bombardear os territórios do Iraque e da Síria alegadamente ocupados pelos jihadistas do EI, provocando uma migração massiva das populações.
Em setembro de 2014, François Hollande anunciou o fornecimento de armas aos 'peshmergas' curdos, sublinhando, porém "a importância de uma resposta política, humanitária e, se necessário, militar no respeito pelo direito internacional".
Também em setembro de 2014, o Reino Unido anunciou o fornecimento de metralhadoras pesadas e munições às forças curdas, reforçando os seus anteriores envios de material de guerra.
A Austrália também assegurou o fornecimento de material militar, armas, munições e a ajuda da sua  Força Aérea.
A Alemanha anunciou o envio para os combatentes curdos de 30 sistemas de mísseis antitanque, 16.000 espingardas de assalto e 8.000 pistolas.
A Itália enviou metralhadoras e armas ligeiras (30.000 AK-47 kalashnikov e 'rockets' antitanque), apreendidas há cerca de 20 anos pelas autoridades judiciais italianas num navio com destino à ex-Jugoslávia.
A Albânia, a Polónia, a Dinamarca e a Estónia também anunciaram a entrega de equipamentos militares.
O que se verificou  no curso do último ano foi  o crescimento da área ocupada pelos jihadistas e o incremento dos bombardeamentos desse território, primeiro pelas forças da difusa coligação internacional e, mais recentemente, pelas forças russas, aliadas de Bachar Al-Assad.
Há alguma similitude entre a criação dos “mujahidins” do Afeganistão e os jihadistas do EI.
Os primeiros foram formatados para combater o exército soviético, satadendo o seu recrutamento feito na população afegã.
Gorados todos os sonhos e indemonstradas todas as ilusões transformaram-se em talibãs.
Os jihadistas foram, essencialmente, recrutados entre jovens desempregados e sem futuro, nos países europeus.
Treinados para combater os ditadores (Saddam, Kadhafi, Assad), convertidos ao Islão e seduzidos para a criação de um estado teocrático avançado, associando a tradição às novas tecnologias e aos benefícios do conhecimento dos países ocidentais, transformaram-se numa força ameaçadora, que já não se contenta com os limites do seu próprio projeto, que, em 2014 tinha as fronteiras da Síria e do Iraque.
O próprio nome ISIS queria dizer Estado Islâmico do Iraque e do Levante, sendo que o Levante é o antigo nome da Síria.
O objetivo primeiro do ISIS foi o da ocupação/organização dos territórios do Iraque e da Síria como base de um Estado.
O Iraque tem a 5ª maior reserva de petróleo do Mundo.
A Síria tinha, em 2011, uma capacidade de produção de 14.000 barris por dia.
São esses uns interesses motivadores dos jihadistas, quase todos criados nos países ocidentais e educados nas suas escolas.
Em novembro de 2015, foi noticiado o homicídio do famoso Jihadi John, um britânico que é um dos cabeças de cartaz da organização, aquele que aparecia vestido de negro a decapitar reféns.
Na sexta-feira 13 de novembro, os terroristas do Estado Islâmico atacaram Paris matando mais de 100 pessoas, com a mesma frieza e a mesma cegueira com que a força aérea francesa mata gente no território da Síria e do Iraque. Em Paris os terroristas dispararam sobre cidadãos pacíficos que assistiam a espetáculos ou fruíam um tempo de lazer nos restaurantes. Um coisa horrível, hedionda; mas que não é menos hedionda do que os bombardeamentos.
Nos últimos meses somos testemunhas dos efeitos do terrorismo dos Estados ocidentais.
Aqueles milhões refugiados a quem cinicamente nos propomos acolher são pessoas de sorte, que só não morreram como os desgraçados da sexta-feira 13 porque, tal como as pessoas que estavam no Bataclan, passaram no intervalo da metralha.
No momento em que escrevo, as agências dizem que os terroristas são todos, provavelmente, franceses e belgas, sendo um filho de uma portuguesa.
Perante isto, não posso deixar de ficar chocado quando vejo a Torre de Belém coberta com a bandeira francesa.
É de oportunismo atroz; e nem sequer se compreende como é que tudo foi preparado para, de um momento para o outro, se projetarem bandeiras francesas sobre os principais monumentos europeus.
Será que os franceses sabiam que iriam haver esta chacina em Paris, como parece que os americanos sabiam que iria haver os 11 de setembro?
Seja como for, não faz nenhum sentido colocar a bandeira francesa onde ela não deve estar, sobretudo quando a França falhou em todas  as dimensões.
Melhor fora que iluminassem o Palácio Junot, na Rua Marquês de Fronteira, à frente do meu escritório, que é um encoberto testemunho das invasões e da primeira tentativa de colonização de Portugal.
Chocado fico, também, por ver a bandeira francesa, símbolo da soberania da República Francesa, no frontispício da nossa Assembleia da República, comos se as tropas napoleónicas tivessem voltado de novo e tivéssemos, os das elites, que fugir para o Brasil e chamar os ingleses para nos libertarem.
Claro que temos que condenar veementemente os ataques terroristas feitos em território francês, na sexta feira, 13 de novembro de 2015, mesmo que os seus autores possam ter sido cidadãos franceses ou até um lusodescendente.
Deveríamos condenar, outrossim, todos os outros ataques terroristas, nomeadamente os que são feitos sob as cores da bandeira francesa, pelas suas forças armadas e que são tão terroristas como os de Paris, se não acautelam a segurança dos cidadãos.
Parece-me que é um valor adquirido o de que não é licito a nenhum estado bombardear indiscriminadamente populações civis no território de outro estado.
O cúmulo do cinismo está nisto: a República Francesa alimenta o jihadismo no seu próprio território, exporta jihadistas para a Síria e para o Iraque e fica chocada se os mesmos ou outros despoletam em Paris bombas que talvez sejam francesas.
Essa coisa que se intitula ISIS /Islamic State of the Iraq and the Levant) – a quem a França reconhece a dignidade de Estado quando qualifica os atentados de Paris como uma guerra – é, em boa parte, uma criação francesa.
Paradoxal é que o ISIS diga que os massacres de Paris são a reação aos bombardeamentos franceses das regiões por ele controladas e que a França riposte dizendo que os bombardeamentos vão continuar.
Os bombardeamentos em causa ocorrem no Iraque e na Síria, que são países independentes e membros das Nações Unidas.
É obvio que os meus amigos de Paris ou de qualquer outra cidade francesa são tão titulares de direitos humanos como as iraquianos e os sírios que habitam no território da Síria e do Iraque, todos os dias fustigado por bombardeamentos cegos dos aliados e da Rússia.
Daqui é inevitável saltar para o plano dos refugiados.
Estes não fogem, essencialmente, dos terroristas do ISIS, mas dos bombardeamentos das forças ocidentais e da Rússia.
O Estado Islâmico ainda não tem aviões...
Por tudo isto me parece que temos que ser solidários com as vítimas, sejam elas quais forem, mas não podemos ser solidários com os carrascos, sejam eles Estados  terroristas ou terroristas mercenários.
É óbvio que os bombardeamentos cegos constituem terrorismo puro e são tão condenáveis como a sua versão minimalista, que vimos em Paris na 6ª feira 13 de novembro.
Por favor não cubram as nossas coisas com a bandeira francesa.
Por uma questão de higiene.