terça-feira, março 26, 2013

A bancarrota europeia


A expressão bancarrota  aparece associada à expressão  banca rotta, dos italianos, e à palavra bankruptcy dos anglo-saxónicos.
Na generalidade dos dicionários, aparece como significando falência ou insolvência, palavras que significam, ambas, a impossibilidade de solver os compromissos assumidos.
Os estados não podem, por natureza, entrar em bancarrota. As dívidas pagam-se em  moeda com curso legal. E a emissão de moeda legal é uma prerrogativa dos estados.
Por isso mesmo, quando se fala de bancarrota de um estado, há que suspeitar de que alguma coisa está a ser oculta aos cidadãos.
A situação de Chipre lançou a confusão na opinião pública.
Mas é, na sua essência, extremamente clarificadora.
É preciso saber ler nas entrelinhas e descodificar as montagens feitas por toda a comunicação social.
O que aconteceu em Chipre foi o princípio do fim do sistema financeiro europeu, que nem daqui a 20 anos voltará a ter credibilidade.
A pequena ilha era um paraíso confiante, onde,  desde britânicos a russos depositaram biliões, recebendo, naturalmente, os respetivos juros.
As pessoas e as empresas só procederam aos depósitos porque acreditaram que os bancos eram seguros e lhes devolveriam os seus recursos, como fazem os bancos que merecem crédito.
O que aconteceu foi que, com a aprovação da União Europeia, os depositantes não vão receber os seus depósitos, porque, literalmente, uma parte substancial dos mesmos foi confiscada, pelos próprios bancos à ordem da dita União.
É isto que, literalmente, se chama bancarrota.
A banca cipriota quebrou, assumindo os dirigentes da União Europeia o ónus da aprovação do não pagamento aos depositantes e do encobrimento do que está subjacente à crise.
O que foi revelado aos europeus foi que as instituições internacionais vão injetar 10.000 milhões de euros na banca cipriota e que, mesmo assim, é necessário que os depositantes de valores superiores a 100 mil euros percam entre 30% e 40% dos seus depósitos.
Não se trata de nenhuma taxa e foi afastada a ideia de concretização de um confisco direto, em que consistiria a apropriação de uma parte dos depósitos pelo Estado. O confisco aparece embrulhado nas imprecisas figuras da "ajuda" e do "resgate", que são meros fatores de encobrimento do que efetivamente aconteceu - um roubo.
Do que se trata é, pura e simplesmente, da aprovação, por todos os países da União Europeia, de uma regra que exceciona a obrigação de devolver uma parte do dinheiro depositado aos legítimos depositantes.
A questão é especialmente grave no concreto contexto de Chipre, uma pequena ilha, cujos bancos detinham depósitos de estrangeiros que, na totalidade, representam quase 9 vezes o produto interno bruto do país.
O excesso de depósitos em dinheiro é, obviamente, um valor positivo, apetecendo perguntar o que aconteceria se  esses depósitos não existissem. Consta que só os russos tinham em Chipre cerca de 70.000 milhões de euros, pelo que vão perder 21.000 milhões de euros.
Os suíços e os luxemburgueses sempre tiveram excessos de depósitos por relação ao produto interno bruto e nunca ninguém os acusou de terem um sistema financeiro desequilibrado, por excesso de depósitos, ou seja, por excesso de liquidez.
De duas uma: ou alguém desviou o dinheiro dos depósitos, inviabilizando a devolução dos recursos aos depositantes, ou estão todos os dirigentes europeus apostados num assalto ao sistema financeiro de um pequeno país, como teste para branquear os desequilíbrios gerados no sistema financeiro.
Vergonhoso é que se invoque a qualidade de “dinheiro sujo” para, literalmente, o roubar, como está a ser feito em Chipre.
Boa parte dos depósitos russos estão manchados pelo sangue dos mártires da União Soviética, que permitiram a sua acumulação e a apropriação pelos oligarcas russos, depois da queda do império.
Estão a roubar o roubado – como salientou o primeiro ministro russo, Dmitry Medvedev – como se vigorasse na Europa o velho aforismo que diz que ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão.
O que, verdadeiramente, é dramático não é a bancarrota de dois bancos cipriotas, que vai custar uns 10.000 milhões de euros aos cidadãos da União Europeia e uns 21.000 milhões aos depositantes russos.
O que é grave é a bancarrota dos princípios, anunciada, de forma sublime, pelo presidente do Eurogrupo, Sr. Jeroen Dijsselbloem, que considera o modelo cipriota exemplar e suscetível de ser aplicado em outros países.
Passamos a saber que a União Europeia desvaloriza completamente a regulação bancária e a responsabilização dos que abusaram do sistema financeiro, deixando aberta a possibilidade de  responsabilizar os depositantes pelos fracassos dos bancos.
Outrora, os estados investiam nos exércitos e na armadas para assaltarem os cobiçados tesouros dos outros. Agora, basta-lhes roubar o que é, ingenuamente, depositado nos bancos.
Fica, por esta via, destruída a (quase) única vantagem dos depósitos bancários: a segurança.
Apesar de venderem os dinheiro dos cidadãos com grandes margens de lucro, apesar de os estados tributarem, de forma violenta, os juros dos depósitos, muita gente há que deposita as suas poupanças porque tem medo de que lhe roubem o dinheiro guardado nos colchões.
As notícias dos últimos dias destruíram essa única vantagem.
Passou a ser mais arriscado ser roubado no banco do que no metropolitano.
É, tudo indica, o princípio da bancarrota da Europa.
Ou os cidadãos reagem ou será a própria Europa a soçobrar.

Lisboa,  2013-03-25

domingo, março 24, 2013

Em Portugal os dirigentes estão loucos


Tenho 61 anos, nasci no tempo da Ditadura e assisti, como jornalista, aos tempos áureos da Revolução de 1974/75, em Portugal.
Vi as mudanças todas: as positivas e as negativas.
Brindei à descolonização e ao nascimento de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor.
Acompanhei a devolução de Macau à China e a entrada numa Europa a que nunca pertencemos, porque sempre tivemos, durante 800 anos, um inimigo aqui ao lado, que não nos deixava passar para o lado de lá.
Sempre defendi o favorecimento das relações com o Brasil e a África, de forma independente, em homenagem a Tordesilhas e àquele ditado que nos diz que “de Espanha não vem bom vento, nem bom tempo, nem bom casamento.”
Apostar na Espanha como principal parceiro comercial é uma asneira quase tão grande como foi a entrega do mar à União Europeia ou a venda da agricultura por meia dúzia de patacos, a troco de um política agrícola comum que nos partiu a espinha.
O euro foi a última das desgraças, exclusivamente motivada para ajudar a tapar o “buraco” alemão. Todos temos saudades do velho escudo, que nos permitia vender os nossos produtos bem vendidos, crescer todos os anos e não ter desemprego.
Éramos pobres mas vivíamos no melhor país da Europa, como o melhor sol da Europa e a melhor gastronomia da Europa.
Portugal era fantástico, antes da maldição do euro, com o qual nada ganhamos e só empobrecemos.
O confisco de Chipre é um aviso e uma esperança.
Devemos interpretá-lo como um teste, para ver a reação da Europa ao primeiro confisco de depósitos bancários feito na zona euro.
A lição do confisco de Chipre resume-se desta forma singela: quem tem dinheiro nos bancos é confiscado, de nada sofrendo, obviamente, quem  tiver os seus recursos guardados em moeda.
É a  velha lógica da preferência pela liquidez que, nos períodos de bancarrota, marca a diferença.
Por natureza não há bancarrota dos países. Há bancarrota dos bancos, quando eles não conseguem cumprir as suas obrigações para com os depositantes.
Os euros dos cipriotas, como os dos portugueses, dos espanhóis ou dos italianos, têm o mesmo valor dos euros dos alemães, com uma única condição: a de se encontrarem na sua disponibilidade, fora do sistema bancário.
Não há nenhum banco que pague juros do montante de 6,75% ao ano, o mínimo que seria necessário para compensar um confisco do tipo do anunciado em Chipre.
É certo que o governador do Banco de Portugal veio amansar os portugueses, aconselhando-os a não alimentar receios; mas ele não tem nenhuma competência nesse matéria, razão por que a sua intervenção deve ser apreciada pela negativa.
O silêncio do governo português,  relativamente a um pedido de esclarecimento da RTP, é simplesmente preocupante.
O blackout bancário em Chipre já começou e está programado até 5ª feira, o que só se justifica como medida para assegurar o efetivo confisco das contas.
Ninguém acreditava que uma tal medida fosse possível. Mas ela aí está no terreno, lançando a completa desconfiança no sistema financeiro do euro, que, afinal, não garante os depósitos até 100.000,00 €.
Não estamos perante um imposto, até porque não há lei que o preveja.
Estamos perante um confisco.
Com a mesmo prudência com que aconselhamos muitos portugueses e muitos estrangeiros a depositar os seus recursos em bancos portugueses – assumindo, naturalmente, a responsabilidade desse conselho – penso que é prudente levantar esse dinheiro e guardá-lo em espécie ou transferi-lo para outros territórios, em que não haja o risco de um confisco do tipo cipriota.
Parece-me, todavia, errado escolher a Alemanha como país de refúgio. Se  os bancos da Europa do Sul falirem, os bancos da Alemanha não ficarão em boa situação, até porque a dívida per capita dos alemães é muito maior do que a dos países do sul.
Parece-me que o melhor refúgio, nesta fase do campeonato, ainda é a moeda, ela mesma.
Levantar o dinheiro dos bancos, guardar os documentos que provam a sua legalidade... E esperar.
Amanhã pode ser tarde.


Miguel Reis

Lisboa, 18 de março de 2013


PS – Sou obrigado a escrever esta nota, que comuniquei a todos aqueles a quem aconselhei depósitos em Portugal, para que não possam acusar-me de qualquer deslealdade

Este texto tinha sido escrito antes do que se encontra abaixo publicado

Taxa, imposto e confisco


Há conceitos que se encontram há muito estabilizados, sendo preocupante que se instabilizem na atualidade.
Taxa é, provavelmente, o mais conceito mais ambíguo, pelo menos em Portugal.  Tanto significa o tributo destinado a pagar um serviço oferecido por entidade pública (taxa de radiodifusão, taxa de urgência, taxa de esgotos) como o percentual aplicado a determinado valor para determinação de uma coleta (a taxa de 48% sobre o rendimentos do trabalho).
Os brasileiros substituíram a expressão, quando ela é aplicada no segundo sentido, o que não só beneficiou a língua portuguesa, mas também beneficiou o rigor e a precisão. A alíquota, no português do Brasil,  é o percentual ou valor fixo que será aplicado sobre a base de cálculo para o cálculo do valor de um tributo.
Obviamente que ninguém confunde alíquota com taxa.
O imposto é a exigência de um pagamento a um particular ou a uma empresa por parte de um Estado, em razão da verificação de um facto e de uma previsão de cobrança nesse quadro fáctico.
Não deve haver, no plano dos princípios,  impostos retroativos nem impostos imprevisíveis, adotando-se nos países civilizados, relativamente a esta matéria, o princípio da tipicidade.
Só são tributáveis os factos que tenham sido previsto na lei, nos precisos termos da previsão.
O confisco é uma espécie de roubo, que consiste em “juntar ao tesouro” o que é apropriado pelo Estado, em condições (geralmente) não previstas na lei.
Muito usado no ancien régime, como arma do poder dominante, o confisco foi recuperado no último quartel do século XX como sanção de natureza penal.

Em Portugal, o  decreto-lei n.º 383/88, de 25 de Outubro, estabelece a disciplina jurídica de bens pertencentes a entidades estrangeiras cujo património haja sido objecto de confisco  nos respectivos países.

As leis penais preveem, na generalidade dos países da União Europeia, o confisco dos objetos usados para práticas criminosas, a favor do Estado.

O confisco está, também, previsto da generalidade das legislações relativamente  às mercadorias introduzidas no mercado com violação das normas aduaneiras.

As nacionalizações são uma forma moderada de confisco, por via das quais os bens e direitos nacionalizados se juntam ao tesouro, porém a obrigação de indemnizar, por parte do Estado expropriante.

Em Portugal, o Estado procedeu à nacionalização muitas empresas, nomeadamente do setor financeiro, dos transportes e das telecomunicações, em 1974 e 1975. Procedeu, também, à nacionalização de grandes propriedades rurais, para fazer a reforma agrária.

Ou pagou indemnizações  (gerando para isso dívida pública) ou privatizou as empresas e as terras, nomeadamente por via da sua devolução às pessoas que eram titulares de direitos a indemnização.

A “taxa” sobre os depósitos bancários anunciada no quadro do resgate da República de Chipre  não é uma taxa mas um confisco; melhor traduzido, um autêntico roubo, por parte de um Estado.

Os russos, que depositaram milhares de milhões de euros nos bancos de Chipre, não o teriam feito se tivessem imaginado que o governo cipriotas, com o apoio unânime de todos os ministros das finanças da União Europeia, se apropriariam de uma parte dos depósitos.

Seria, indiscutivelmente,  lícito um aumento dos impostos sobre os juros pagos como contrapartida de tais depósitos, como aconteceu, recentemente, em Portugal, em que os juros passaram a ser tributados á taxa de 28%.

Uma coisa é cobrar um imposto de 28% sobre juros, calculados à taxa de 3% ou 4% sobre o capital. Outra, completamente diferente, é cobrar uma “taxa” de 20% sobre os depósitos.

No primeiro quadro, o depositante mantém o capital e ainda recebe 72% dos juros. No segundo quadro, perde 20% do capital.

Ora, o que vimos relativamente a Chipre foi que os ministros das Finanças da União Europeia concordaram, de forma unânime, com o confisco.

Mesmo que eles afirmem que o modelo não vai ser aplicado em mais nenhum país, é óbvio que uma tal declaração não  merece nenhum crédito, porque o que está em causa não é o concreto circunstancialismo de Chipre mas uma rotura com os princípios, que põe em causa a fiabilidade dos sistema financeiro da União Europeia.

Sendo a “taxa” (expressão por que é tratado o confisco) aplicável aos depósitos bancários, em termos que destroem a própria ideia do depósito de dinheiro em bancos, parece-nos que a única via segura para preservar os valores monetários  consiste em os guardar em espécie.

Como é sabido, o depósito bancário é qualificado como um depósito irregular, ou seja, um depósito em que o depositário está obrigado a entregar não a própria coisa mas coisa de igual espécie e quantidade.

O dinheiro depositado em bancos passa a ser, a partir do momento do depósito, propriedade do banco, pelo que, se o banco o perder ou se o governo o confiscar, são recursos do próprio banco que são perdidos ou confiscados.

Sempre foi assim, há pelo menos 200 anos.

Mas a questão cipriota promete alterar tudo. O Estado retira aos bancos 20% dos recursos depositados (que são propriedade dos bancos) e desobriga-os de pagar o que se comprometeram a pagar aos particulares.

Toda a lógica se agrava na sua perversão quanto é certo que o confisco se destina a tapar os buracos dos bancos.

O Estado rouba aos particulares o que os bancos precisavam de roubar para resolver os seus próprios problemas, limpando, por essa via, a própria imagem dos bancos e onerando, de forma intolerável, a responsabilidade dos particulares.

Feita esta operação em Chipre, tal como está previsto, passa o modelo a ser possível em qualquer outro país da União Europeia.

A única forma que permite, às pessoas e às empresas, evitar o risco a que foram sujeitos os cipriotas reside na preferência absoluta pela liquidez, ou seja: guardar o dinheiro em espécie, em vez de o guardar nos bancos.

É por isso que, convictamente, aconselho todos os meus amigos e clientes a retirar a totalidade dos seus recursos dos bancos.

Antes que seja tarde.

 

23/3/2012

 

terça-feira, março 12, 2013

Por que me demiti do Conselho Deliberativo da Casa de Portugal de São Paulo

Tenho recebido muitas mensagens pedindo esclarecimentos sobre a minha demissão de membro do Conselho Deliberativo da Casa de Portugal de São Paulo.
Não tenho nada a esconder.
Por isso, aqui fica a cartas que escrevi:



São Paulo, 28 de fevereiro de 2013





Exmº Senhor Presidente do
Conselho Deliberativo da
Casa de Portugal de São Paulo
Avenida da Liberdade, 602
São Paulo



            Sirvo-me da presente para pedir a minha demissão como membro desse Conselho Deliberativo, apresentando aos meus ilustres pares, à Diretoria  Executiva e à Comissão de Contas a reflexão que a justifica.
            Quero deixar muito claro, em primeiro lugar, o meu agradecimento a todos os que, nesta Casa, me acolheram como amigo e declarar que nada me move, para além de um sentido muito pessoal – pessoalíssimo – de cumprimento do dever.
            Não sou, por feitio, pessoa capaz de ocupar cargos como verbo de encher.
            É o mínimo que se exige a um cidadão ativo, a benefício do respeito que merecem as instituições.
            Não faz nenhum sentido continuar a fazer parte do Conselho Deliberativo da Casa de Portugal quando o órgão, apesar das vastas competências que lhe são atribuídas pelo artº 51º do Estatuto, não exerce as suas atribuições ou as exerce sem convocar os seus membros. E quando os membros do Conselho Deliberativo não têm sequer o direito de aceder aos endereços dos seus pares, sem que  isso seja aprovado pela Diretoria.
            No dia 28 de fevereiro pedi que me fosse facultada uma lista dos endereços dos demais membros do Conselho, tendo-me sido respondido que deveria formular o pedido por e_mail.
            Recebi hoje a resposta: que o assento vai ser analisado na próxima reunião da Diretoria, a 5 de março, o que, na minha singela interpretação, dá uma nota de desvalor ao órgão e aos seus membros, com a qual, pessoalmente, entendo não dever compactuar.
            Este pequeno incidente precipitou uma série de reflexões e a posição que adoto com esta carta.

            Entre as atribuições mais importantes do Conselho Deliberativo, saliento as seguintes:
a)    Tomar conhecimento e deliberar sobre o balancete de semestre e os relatórios e contas do ano anterior;
b)   Deliberar sobre os atos da Diretoria Executiva, execução do Estatuto e aprovação de regulamentos e proposições sujeitas a sua apreciação;
c)    Julgar apelações dos associados;
d)   Promover inquéritos administrativos que se mostrem necessários;
e)    Resolver os casos omissos no Estatuto.
Dispõe o artº 32º do Estatuto que o Conselho Deliberativo reúne obrigatória e ordinariamente até ao dia 5 de março, para dar cumprimento à al. b) do artº 51º.
Todavia, a norma não é respeitada, sendo que, para o corrente ano, a reunião foi convocada para o dia 11 de março, o que constitui frontal desrespeito pelo Estatuto e pelos membros.
Para poder cumprir a minha obrigação de estar presente, adiei uma passagem para o dia 6 de março, tendo confidenciado isso a alguns amigos. Não sei se foi esse facto que justificou o desrespeito da norma estatutária.
Todos temos, como associados, a responsabilidade de  fazer cumprir o contrato social que implica compromissos objetivos constantes do  Estatuto da Casa de Portugal.
Nos termos do artº 2º, a Casa de Portugal é um instituição cultural que tem dois objetivos principais:
a)    Perpetuar e divulgar a cultura portuguesa e luso-brasileira;
b)   Congregar e irmanar a comunidade dos países de língua portuguesa, de forma ampla e abrangente.
O Estatuto atribui competências muito precisas e objetivas aos diversos departamentos, que são os seguintes:
-       Cultural
-       Social
-       De Expansão Associativa
-       De Promoção e Marketing
-       De Imprensa e Comunicação
-       De Assistência Médica Associativa e Beneficente
-       Feminino
-       Jovem
-       De Intercâmbio Cultural com os países lusófonos
Penso que todos estaremos de acordo na conclusão de  que nenhum dos departamentos tem respeitado as disposições estatutárias, com exceção de Departamento Social, que tem a competência para organizar comemorações.
O Departamento Cultural é aquele a quem o Estatuto confere maiores competências e exigências.
Apesar de ter residido mais de 30 anos em Lisboa, devo confessar que devo  à Casa de Portugal parte importante do meu conhecimento sobre a música moderna do Brasil e de Portugal, graças à capacidade de organização que a Casa teve enquanto essa área foi dinamizada pelo saudoso Joaquim Magalhães.
Passaram pela Casa os maiores nomes da música, tanto de Portugal como do Brasil.
Nunca mais se viveram esses tempos áureos. A atividade cultural da Casa de Portugal foi reduzida, praticamente ao zero.
Ao domingo à tarde, a Casa oferecia aos sócios um baile, a que alguém chamou o “baile da saudade”, um desfile de memórias e solidões. Mataram-no, sem nenhuma justificação.
O que, originariamente, deveria ser um espaço cultural para atrair a juventude, o bar que levou o nome de “Marquês” transformou-se num buffet ao meio dia e num espaço noturno vulgar à noite, o que, em minha opinião, perverte completamente o escopo estatutário.
Por mera curiosidade, disse, na última assembleia em que participei, que gostaria de ver o contrato que permite o uso desse espaço e senti que incomodei, razão pela qual não repeti o pedido.
Sei que no ano de 2011, o Buffet O Marquês pagou à Casa de Portugal 266.255,53 reais, ou seja uma média de 22.187,00 reais por mês, qualquer coisa como 700 reais por dia.
É uma boa receita, mas isso não significa que seja a solução ou a melhor solução. Pergunto-me se não seria possível explorar aquele espaço de forma mais comprometida com a cultura portuguesa, quando é certo que são cada vez menos os espaços de cozinha portuguesa em São Paulo.
Tendo acompanhado a ideia inicial, choca-me o desvario da sua evolução para um simples buffet e uma casa noturna. Mas choca-me ainda mais que o espaço mais nobre da Casa, que é a sua receção tenha sido ocupada com um escritório do referido buffet, para além do mais, ao que parece, de forma gratuita, sem qualquer pagamento.

As contas não são, porém, o que parecem. Ou seja: não são claras nem transparentes.
Não se conhecem as de 2012.
Mas em 2011, apesar de praticamente não ter atividade, a Casa gastou:
-       96.489,00 reais em água
-       91.190,00 de pagamentos ao Buffet O Marquês
-       113.792,32 reais em energia elétrica
-       185.738,00 em eventos
O salão de festas rendeu nesse ano 586.150,00 reais, o que significa que terá sido alugado apenas 58 dias no ano pois que, segundo a informação que colhi o valor do aluguer era de 10.000 reais por dia.
Tenho para mim como indiscutível que, nos termos da legislação brasileira, a atividade comercial desenvolvida pela Casa de Portugal, tanto no que se refere ao aluguel dos seus salões como no que se refere à exploração indireta de estabelecimentos comerciais está sujeita a tributação e que as contas revelam um inequívoco quadro de sonegação fiscal.[1]
É certo que a Constituição da República Federativa do Brasil garante a imunidade de tributação relativamente a algumas entidades e que, numa interpretação analógica, latissimu sensu, poderia configurar-se a Casa como integrável num dos grupos de entidades imunes, especialmente se ela desenvolvesse, como já desenvolveu, e está previsto nos seus estatutos, atividade assistencial.
Não me parece que seja o caso, quando se tornou uma evidência que a associação nada dá atualmente aos sócios e se transformou num centro de interesses comerciais, que, por natureza, não pode nem deve beneficiar de isenções tributárias.
            No ano de 2011 foram pagos apenas 10.257,58 reais de impostos, quando os valores da receita ultrapassaram o montante de 1.291.600 reais e a entidade teve um superavit de 124.282,00 valores decorrentes, no essencial, de atividades comerciais desenvolvidas na instituição.
            A situação poderia alterar-se se a Casa desenvolvesse uma atividade cultural efetiva e as atividades comerciais concessionadas se integrassem no âmbito dessa atividade, como serviços prestados aos sócios. Mas não é isso, inequivocamente, o que acontece,  o que se me afigura demasiado imprudente e perigoso.
            Parece-me que a Casa poderia desempenhar um papel muito importante no desenvolvimento das relações entre Portugal e o Brasil e eu próprio sugeri a várias empresas que alugassem o seu espaço para eventos de promoção.
            Tudo esbarra na não emissão de notas fiscais relativas ao aluguel de espaços, que inviabiliza totalmente o uso desses recursos pelas empresas portuguesa, tributadas a 100% no que toca às despesas não documentadas.
            Parece-me evidente que a oferta de aluguel de espaços com a recusa de emissão de nota fiscal  configura um inaceitável quadro de sonegação, que se afigura demasiado perigoso.  E digo isto com a perfeita consciência de que há muita gente, incluindo ilustres juristas, a sustentar o contrário.
            Por mais que me doa – que nos doa a todos – não é sequer chocante que, perante este quadro que a administração tributária brasileira possa vir a adotar as medidas adequadas a pôr termo à sonegação emergente de um quadro de abuso de benefícios fiscais. Se isso acontecer, é o fim da Casa de Portugal e, se houver Estado de Direito, a responsabilização de todas as pessoas coniventes por este estado de coisas.
            Essa é uma das razões da minha demissão.
            Seria muito desagradável votar contra as contas. Mas, imaginando que elas são no mesmo sentido das do ano passado, nunca poderia votá-las favoravelmente.
            Aplaudi recentemente a contratação da Cláudia Teixeira, para ocupar um lugar de produtora cultural visando a organização de eventos culturais na Casa.
            Sou vizinho, há muitos anos, e tenho assistido à degradação do uso dado ao excelente edifício que possuímos na Avenida da Liberdade. Porque conheço a Cláudia (que até já trabalhou no meu escritório de Lisboa) acreditei que ela pudesse trazer uma lufada de ar fresco e atenuar os riscos de um ataque tributário.
            Quando voltei ao Brasil, em janeiro, depois de um tratamento médico em Portugal,  soube que ela foi convidada a demitir-se, porque ganhava mais do que o que fora previsto, de acordo com o contrato com ela celebrado.
O salário acordado foi de 2.000 R$ mensais. Porém recebeu, nos 3 meses em que trabalhou para a casa, 6.351,80, 4.828,00 e 5.914,00, o que terá chocado alguns diretores.
Se, como foi alegado, ela nada fez porque tudo estava já contratado, é forçosa a conclusão de que era previsível que ela teria estes rendimentos, a não ser que houvesse omissão de informação sobre a ocupação das instalações.
Segundo informação da Cláudia, porque isso lhe foi referido, por diretores, foi afirmado em reunião da diretoria que a Claúdia  ganharia 8.000,00 R$, sem que isso tenha sido desmentido, o que suscita a dúvida de saber se alguém recebeu o diferencial.

            O que a Cláudia Teixeira me comunicou coloca uma questão muito delicada, que é a de saber se entram na Casa todos os valores de locação.
            Segundo me foi referido pela Cláudia, a média da locação mensal, nos 3 meses em que esteve a trabalhar na instituição, foi de 85.000 reais, o que projeta uma valor anual de 1.020.000,00 R$.
            Se é verdade que ela nada fez, teremos que concluir que é adequada a suspeita de que falta dinheiro, se as médias dos meses anteriores e posteriores forem inferiores aos 85.000 reais mensais.
            Impressionante é a comparação destes resultados com o mapa que lhe foi entregue no momento da contratação, no qual se diz que a média mensal de 2011 era de apenas 48.000,00 reais.
            Parece-me que ninguém deve dormir descansado enquanto isto não se esclarecer.

            Esta dúvida é tanto mais  justificada quando é certo que a Casa, como já referi,  não emite nota fiscal, conforme  me foi garantido na secretaria, no dia 28 de fevereiro, na presença do Sr. Fernando Miguel.
            Parece-me que a não emissão de nota fiscal permite não só a sonegação como o absoluto descontrolo da receita.
            Entendo que este Conselho deveria abrir um rigoroso inquérito para esclarecer esta questão, tanto mais que essa funcionária despedida assegura que a agenda da Casa estava muito mais preenchida do que o que lhe fora anunciado – e justificara a sua contratação.
            O exercício lógico que estas informações projetam pode resumir-se nestes termos:
a)    Porque não havia suficiente ocupação da Casa, contrataram a Cláudia:
b)   Em todos os meses ela ganhou mais do que o que fora previsto;
c)    E conclui que a taxa de ocupação era muito maior do que a que lhe fora anunciada, no momento da contratação;
d)   Se assim é, não havia necessidade de a contratar para depois a despedir, a não ser que a Diretoria tivesse uma informação acerca da receita muito inferior aquela que foi verificada.
Parece-me que o mínimo que importa fazer é comparar as receitas dos meses em que a Cláudia trabalhou com as dos meses anteriores e posteriores, sob pena de ser legítima a suspeita de que a despediram para encobrir a realidade.
Posteriormente a isto, soube que a D. Conceição foi despedida e está a ser indenizada em condições que ofendem as leis.
A informação que me deram é no sentido de que a referida funcionária, que todos conhecemos como tal não estaria sequer registrada e terá sido coagida no sentido de negociar uma demissão.
É gravíssimo se a Casa teve uma pessoa que se apresentava como responsável pela secretaria de forma ilegal, sem cumprimento das leis trabalhistas.
Mas é ainda muito mais grave que se afaste essa pessoa, com todo o peso que ela tinha, de forma obscura.
Se eu me mantivesse como membro desse Conselho teria que pedir esclarecimentos sobre este assunto e, seguramente, que me incomodaria se não os recebesse, como é, de todo previsível.

Outro enigma é o da relação da Casa com o jornalista Luís Cláudio Almeida. O que o referido jornalista me referiu é que pretendiam que ele assinasse um contrato que ofende as regras da profissão no Brasil e compromissos assumidos anteriormente, razão por que o não assinou e se afastou da instituição, com todas as consequências que isso tem, nomeadamente no que se refere à presença da instituição na media.

Sou amigo do comendador António dos Ramos, relativamente a quem tive uma postura crítica, no momento da candidatura de outro amigo, o Dr. Júlio Rodrigues.
São ambos excelentes pessoas, com perfis, porém, muito diferentes.
O Dr. Júlio Rodrigues é um banqueiro, que emergiu daquele grupo de portugueses que Portugal, hoje, pretende esconder, como se não existissem.
Geriu a Casa numa perspetiva economicista, apagando, praticamente, a sua vocação cultural e anulando totalmente a sua dimensão assistencial. Já ninguém se lembra que os sócios da Casa de Portugal beneficiavam de um desconto de 50% no Hospital da Beneficência Portuguesa.
No plano do cumprimento das obrigações estatutárias a sua gestão do Dr. Júlio Rodrigues foi um desastre, comparado com o sucesso das administrações anteriores, do comendador António dos Ramos, um amigo que tanto critiquei, em razão do seu centralismo.
O António dos Ramos centralizava, mas a Casa tinha um programa cultural e um programa assistencial, este último desenvolvido pela Beneficência (e de que eu, inclusive, aproveitei algumas vezes).
Parece-me que, neste momento dramático de desorientação que a Casa enfrenta seria útil que se  reunissem para encontrar uma solução de unidade, exigente e séria, que não obrigue as pessoas a pôr a cabeça na areia e a engolir tudo e que, ao invés, encare os problemas, mesmo os mais difíceis, de frente.
Todos sabemos que são pessoas sérias. Como sabemos que os números  não batem de forma certa e que é preciso esclarecê-los, sob pena de a instituição se afundar no descrédito e, inevitavelmente, na ilegalidade.
Há que tomar decisões enquanto é tempo; e que encarar os problemas com a seriedade que eles merecem.
O que acima vos refiro, por relação ao que considero ser um quadro de sonegação fiscal é, apenas, um opinião.
Uma opinião suficientemente estudada e elaborada que justifica que eu não possa dar o meu voto de aprovação às contas e às condutas.
Respeito todas as opiniões diversas.
Para evitar o desconforto de um voto negativo com os enunciados fundamentos, demito-me do Conselho, porque me parece que essa é a única via honesta que tenho para encarar, de forma responsável, a sobredita realidade.
Continuarei a dar à Casa todo o contributo que me for solicitado, mas lastimo não poder pactuar com situações que ou são obscuras ou, na minha opinião,  ofendem, deliberadamente, as leis do Brasil.
Os meus melhores cumprimentos



Miguel Reis